quarta-feira, 6 de maio de 2009

Para comer como rei

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João chegava a devorar seis frangos inteiros por dia. Eram três no almoço e três no jantar. E caso sobrasse um tempinho no meio da tarde e uma asinha de galinácea assada passasse em alguma bandeja, não fazia questão de repetir o sabor. O rei de Portugal, que não tinha pudor algum em assumir a fama de comilão, saboreava as "perdizes" de várias maneiras. Podia ser grelhada, assada no forno, ensopada, cevada com arroz ou misturada em qualquer outro ingrediente. O costume (para não dizer tara) de Dom João VI por frangos, ao contrário do que muitos pensam, não se desenvolveu nesta terra cabocla. Quando aportou no Rio de Janeiro em 7 de março de 1808, trazia em um dos vários baús de pertences, uma pérola que acompanhava a corte: o livro Arte de cozinha, de Domingos Rodrigues, editado pela primeira vez em 1680. Ali, naqueles primeiros escritos gastronômicos em língua portuguesa, presentes nas prateleiras das cozinhas mais nobres de Portugal, estavam os princípios da cozinha lusitana, que mais tarde reforçariam os fundamentos da culinária brasileira.

Reeditado no ano passado pela Editora Senac Rio, dentro das comemorações dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil, o livro nos revela que Dom João e cia comiam muitíssimo bem, do bom e do melhor. A nobreza na mesa, com ingredientes importados que incrementavam não apenas as perdizes, mas também pescados, porcos, perus e outras carnes de primeira, não assentaram bem ao paladar da esposa do rei, Dona Carlota Joaquina. Bem diferente de Dom João VI, que rasgava elogios à colônia, Carlota não tinha papas na língua para dizer que o Brasil era "terra de mosquitos e papagaios". Se detestava feijão, farinha de mandioca, banana e carne-seca, por outro lado a rainha arrancava elogios ao palmito, enviado periodicamente a seu irmão, Dom Fernando VII, rei da Espanha.

Mas João, como contam historiadores, pouco se importava com as frescurites da mulher. Queria mesmo era comer sua Galinha mourisca, uma das receitas preferidas da corte, desde o tempo de Manuel I, o rei que "descobriu o Brasil". Quando não era a mourisca, degustava seus franguinhos assados, à moda portuguesa, exatamente como na receita repassada pelo Arte de cozinha. Em sua nova edição, o livro traz os escritos originais de dezenas de receitas, entre elas a de Perdizes à portuguesa. A renomada chef carioca Flávia Quaresma faz uma adaptação contemporânea do que seria o prato preferido de Dom João VI - que, agora, repassamos a você, leitor. Um galeto assado de sabor popular e brasileiro. Mas para comer como rei.



Perdizes à Portuguesa

Original do livro Arte de cozinha (1680), de Domingos Rodrigues



Logo que estiverem entesadas as perdizes, lhe darão em cada uma seis golpes ao comprido: e lardeando-as por dentro dos golpes com lardos de presunto, e apertando-as muito bem à roda com um cordel, as porão a assar com lume por baixo e por cima, em uma frigideira cova com azeite, vinagre e pimenta: depois de assadas, as porão em um prato e deixarão ferver o molho com umas poucas de alcaparras de França; como estiver fervido, o deitarão sobre as perdizes e as mandarão à mesa.



Galeto à Portuguesa (Receita atualizada por Flávia Quaresma)



Ingredientes

- 550g de galetos (4 unidades inteiras)

- 3 xícaras de vinho branco

- 1 colher de chá de zimbro

- 1 colher de café de pimenta braca em grão

- 1 cebola grande picada

- 1 alho poró picado

- 6 galhos de aipo picado

- 60g de cenoura picada

- 1 folha de louro

- 2 galho de tomilho

- 1 1/2 colher de sobremesa de salsa em talo, sem as folhas

- 10g de folhas de sálvia

- sal e pimenta-do-reino a gosto

- 200g de presunto cru fatiado

- 2 1/2 colheres de sopa de manteiga



Modo de preparo



Marinar os galetos com vinhos, as especiarias e as ervas, cobrir com filme plástico e deixar na geladeira por aproximadamente seis horas. Retirar os galetos da marinada. Secar com papel toalha e temperar com sal e pimenta. Amarrar as pernas dos galetos e passar duas fatias de presunto cru ao redor de cada galeto, amarrando com linha de cozinha. Colocar pedacinhos de manteiga sobre eles. Levar ao forno a 180°C por aproximadamente 30 minutos, até que estejam no ponto e dourados.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Caps... o quê?


Essa crônica estava guardada. Achei que para abrir caminhos e dar uma ingrenada neste blog que amo fazer ela seria perfeita. Então vai!

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Para alguns, elas servem no combate ao mau olhado. Para muitos, é tempero essencial no acarajé, caldinho, pirão, sarapatel... Toque especial em iguarias bem brasileiras. Mas, para pouquíssimos, as pimentas são razões de vida, gratidão. É assim que os frutinhos ardidos são considerados pela capsicóloga Carmem Coutinho. Capsi... o quê? Pois é, o grande envolvimento dessa pernambucana com as pimentas fez até ela criar um denominação para seu empenho, estudo e admiração aos tipos dessa especiaria. Capsium (do latim, gênero das pimentas ardidas) se junta ao óloga (estudiosa). Realmente essa Carmem, com uma profissão tão específica e detentora de uma paixão incomum, não é uma pessoa como as outras. E sua própria história de vida explica porque é diferente.


Há 56 anos, nasceu hiper-matura, após 11 meses de gestação. Veio ao mundo com sinusite catarral crônica, problema de visão, rosto deformado pela deficiente respiração. Passou por uma toxoplasmose, paralisia intestinal, incontinência urinária até chegar, já adulta, a receber o diagnóstico de que estaria tetraplégica. Mas, diante da dificuldade que assusta qualquer ser humano, lembrou de um dia feliz.


Quando tinha onze anos, experimentou pela primeira vez, no Centro do Recife, bolinhos miúdos de feijão fradinho, o popular acarajé. Colocou pimenta e devorou 26 deles. Jamais esqueceu aquele ardor e, para a menina que não comia nada além de carne assada, arroz e batatas, a pimenta deu disposição para outras experiências gastronômicas. "Depois que comecei a comer pimenta, fiquei curada da sinusite. Quando veio a paralisia, passei a ingerir pimenta todos os dias e fiquei totalmente curada", garante. Hoje em dia, Carmem come pimenta até na colher. Numa única esfirra, chega a colocar três colheres de sopa da conserva natural, que produz com pimenta malagueta. Não há quem tire de sua cabeça que suas "amigas-pimentas" curam qualquer doença - com exceção de labirintite e edema de glote, segundo ela.


São segredos de longevidade, a exemplo de sua tia, Zazá, que, como ela, come pimenta todos os dias e já vai com 98 anos de saúde e lucidez. "Quanto mais ardidas, mais eficazes", garante a capsicóloga. Suas pimentas, da marca Brasil Pimentas e Derivados, são produzidas artesanalmente em um tranqüilo sítio na zona rural de Olinda. Sem corantes, conservantes ou qualquer outro aditivo químico, as pimentas de Carmem vêm ganhando admiradores nos últimos três anos.


Essa vai sem receita. Afinal, pimenta é pimenta e, para quem gosta, cai bem até em pastel!