segunda-feira, 17 de março de 2008

Bacalhau: a vergonha de Dona Adelaide

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foto: Ricardo Fernandes

Lá pela década de 1930, Dona Adelaide, gente da high socity recifense, sofreu uma baixa em sua conta bancária. Com a corda no pescoço e tendo que sustentar três filhos esfomeados, acostumados com iguarias importadas, precisou trocar o salmão e o filé mignon por bacalhau. O peixe salgado, vendido na época nas bancadas de feiras populares, era a vergonha da família. Antes de ir à panela, todas as janelas da casa eram severamente fechadas para que os vizinhos não sentissem o forte cheiro de bacalhau cozido. Seria o fim da pompa daquela senhora aristocrata caso alguém percebesse sua "pobreza passageira".

Veio o fim da segunda guerra, em 1945. Mais uma vez, como de costume nos altos e baixos da renda familiar, Dona Adelaide precisou recorrer ao bacalhau. Mas aí já era tarde. Com a escassez de alimentos na Europa, o preço do "peixe salgado" disparou e, a partir daí, virou item apenas de mesas abastadas e prato sazonal, nas ceias pascoais e natalinas. O que a nossa personagem não esperava encarar foi o fato de seus mimados filhos terem ficado viciados nquele sabor irresistível.

Dona Adelaide, sem dinheiro no bolso, teve que fazer mais uma substituição drástica na rotina alimentar: passou do requintado norueguês gadus mohrua (também chamado de bacalhau do porto) para o então (e até hoje) popular saithe. Para quem não sabe, bacalhau não é uma espécie de peixe, mas o resultado do processo de salga do pescado. Os outros três tipos mais utilizados como bacalhau são o ling, zarbo e o gadus macrocephalus.

Apesar de não ter cacife para consumir as postas largas, o povo continua a não dispensar o prato, principalmente em datas festivas. Vem daí o famoso batatalhau, como o que é feito na casa de minha vó Nilda, no subúrbio carioca. Toda vez que eu e meu pai podemos visitá-la, o bacalhau é servido como forma de carinho, sobreposto por cebolas cozidas, couve e batata, muita batata. Ao contrário de Dona Adelaide, vó Nilda jamais sentiu vergonha da iguaria e, na verdade, lembra com orgulho do tempo em que bacalhau era "comida de pobre".

Da mesma forma acontece com a chef Nilza Damascena, do Club do Vin, em Boa Viagem, que recorda histórias de sua vó Lizete, hoje com 72 anos. Criou os oito filhos com caldo de bacalhau e farinha de mandioca. O pirão feito com os dois ingredientes, que no tempo da escravidão era conhecido nas senzalas como mingau de pipinga, é uma dos símbolos da mistura do colonizador com o colonizado nas panelas brasileiras. No restaurante em que trabalha, Nilza vai preparar nesta Semana Santa o bacalhau com polenta. Talvez queira mostrar aos ricos como pobre também sabe comer bem.

Para a nossa dica de domingo, fomos buscar uma cozinheira com propriedade no assunto. Maria Martins, da Rose Beltrão Recepções, aprendeu 385 receitas com a mãe, a portuguesa Berta de Souza, que deixou tudo registrado no livro Só bacalhau, editado na década de 70. De presente à coluna, ela entrega o truque do Bacalhau espiritual. Para o preparo, é melhor usar o "do Porto" (claro!), mas se não der, siga lição de Dona Adelaide: sem dinheiro, a criatividade é o tempero!

RECEITA
Bacalhau espiritual
(por Maria Martins, da Rose Beltrão Recepções)

Ingredientes:

- 1 kg de lombo de bacalhau demolhado sem pele e sem espinha
- 1/2 litro de azeite extra virgem
- 1 cebola grande
- 1 saco de pão de caixa cortado na horizontal
- 1 litro de leite
- Sal a gosto
- Pimenta-do-reino a gosto
- Suco de limão a gosto
- 1 litro de molho bechamel

Modo de preparo:

Cozinhe o bacalhau em fogo baixo sem levantar fervura. Pique a cebola bem fininha e coloque numa panela com um copo de azeite. Deixe refogar até a cebola ficar transparente. Em seguida, abra o bacalhau em lascas, coloque junto com a cebola refogada, deixe ferver por uns 10 minutos mexendo sempre com a colher até ficar uma massa macia. Se estiver seco, deve-se colocar mais azeite, temperar com sal, pimenta e o suco de limão. Reserve. À parte, pegue o pão de caixa, molhe em leite morno tendo o cuidado para não desmanchar.
Forre o pirex com o pão, depois coloque em cima a metade da massa do bacalhau que estava reservada. Deve-se comprimir bem o pão, depois colocar outra camada do pão molhado no leite e espalhar a massa do bacalhau restante, procedendo da mesma maneira da primeira. A última camada deve ser de pão, sempre lembrando de comprimir bem. Por fim, cubra com o molho bechamel, que não deve ser muito grosso. Deixar descansar de três a quatro horas antes de ir ao forno, que não deve estar muito quente por 30 a 40 minutos até tomar uma cor. Deve-se servir bem quente.

SERVIÇO
Rose Beltrão Recepções: 3268.2901
Club du Vin: 3326-5719