sexta-feira, 25 de abril de 2008

Amizade da cor-de-beterraba

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foto: Aline Feitosa

Lembro como se fosse hoje: a panela tampada, amarrada com um pano de prato bordado. Abrimos. Dentro, um caldo roxo-goiaba, estranho. “É consomê de beterraba!”, defendeu Mel, chiquérrima, que havia levado a iguaria para mais um encontro das quatro melhores amigas que uma faculdade poderia gerar. Esquentamos a sopa, servimos e por cima de cada cuia, salpicamos pedacinhos de ovos cozidos e azeite. Surpreendentemente maravilhoso.

A iguaria, receita de uma vizinha de Mel, é até hoje a mascote-do-sabor do Subgrupo (nossa autodefinição em meio às pessoas do corredores universitários). Essa semana, dez anos depois de termos experimentado pela primeira vez o consomê de beterraba, repetimos a dose. A panelada para quatro pessoas foi feita pela minha comadre, a Condessa de Santo Amaro, hoje especialista em sopas. Uma habilidade que não é nata, veio com a prática.

Antes dos inúmeros preparos do consomê para o Subgrupo, um dia a Condessa decidiu agradar um amigo vindo da Espanha, de apelido Beterraba. Anunciou para ele e outros amigos em comum sobre o cardápio da noite em seu apartamento.Mas, quatro horas antes de iniciar os preparativos na cozinha, lembrou que não sabia a receita. Telefonou para Mel quase em desespero e recebeu a frustrante resposta: “Condessa, não me lembro como se faz. A receita é da minha vizinha.”. Sem pestanejar, pegou com a amiga o telefone da vizinha, Mércia, e ligou. Ela não estava em casa. Pânico. Com a empregada, conseguiu o celular da filha da vizinha. “Alô, filha da vizinha, você não me conhece... mas é que preciso da receita do consomê de beterraba que sua mãe faz”.

Obviamente, a filha de Mércia achou a Condessa uma louca. Mas, ajudou e duas horas depois (enquanto a Condessa já descascava batatas, decidida na mudança da receita) toca o telefone do apartamento da Rua da Aurora, em Santo Amaro. Era Mércia, a vizinha, que lhe cedeu gentilmente o passo-a-passo, achando a história hilária. A Condessa anotou e hoje é capaz que fatiar as beterrabas de olhos fechados. Até porque, aqui pra nós, a sopinha é tão simples que não carece de muito esforço em frente ao fogão, mesmo tendo seu segredo (descubra-o na receita abaixo). Mas é, sem dúvida, a cor e o sabor que representam a melhor amizade coletiva do mundo.

Para Babuína, Magá e Melzinha.

RECEITA

Consomê de Beterraba
(Por Mércia (a vizinha), com releitura da Condessa de Santo Amaro)
Porção para quatro pessoas

Ingredientes
- 4 beterrabas médias
- 1 tablete de caldo de legumes
- 1 lata de creme de leite
- 3 ovos cozidos
- Sal a gosto
- 4 copos cheios de água

Modo de preparo
Descasque as beterrabas e corte-as em fatias finas, para ser mais fácil o cozimento. Pique uma das beterrabas em cubos. Coloque-as na água deixe cozinhar com um tablete de caldo de legumes (o segredo.). Pronto o cozimento, separe as rodelas dos cubos. Reserve os cubos. No liquidificador, bata as rodelas com a água ainda quente até obter um caldo grosso. Repasse o caldo batido para a panela, acrescente os cubos de beterraba e deixe ferver. Enquanto isso, cozinhe os ovos. Após cozidos, descasque, pique e reserve em uma tijela. Volte a dar atenção ao caldo. Se estiver muito grosso, acrescente um pouco de água. Não deve ficar nem muito ralo, nem muito consistente. Ajuste o sal. Por fim, com o fogo desligado, coloque o creme de leite (batido com o soro) e mexa bem. Ponha em cima de cada porção um pouco dos ovos picados e um fio de azeite. Sirva com pão e vinho tinto.

Frustrante é comer pedra com areia

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Foto: Júlio Jacobina

Quando crianças brincam de cozinha, usam panelinhas de plástico e fogo de celofane vermelho e amarelo. O coentro é grama, a carne é pedra e o arroz pode ser arroz mesmo. A terra vai como tempero e, no fim da brincadeira, é sensato fingir que se come. E essa é a parte chata. Frustração que não fez parte da infância das irmãs Albânia e Gênova. Lá pela década de 1950, imagino, no quintal de sua casa na Boa Vista, centro do Recife, a diversão era bem diferente das convencionais "casinhas" imaginativas do brincar.

Quando a idéia era fazer comida, a mãe delas lhes fornecia pedacinhos de bife, tomates maduros, cebola e manteiga. Picavam tudo com faca cega e, no intuito e recordação dos procedimentos que visualizavam diariamente numa cozinha de verdade, faziam o refogado. Fogo de gravetos aquecia a manteiga na frigideira de ferro velha. Vinha a cebola, o alho (quando tinha), o tomate e por fim, o bife. Aquela mistura ficava ali alguns minutos apurando. Subia o cheiro, irresistível. Não tinha aroma de mato, nem gostode pedra. Era comida de brinquedo, porém pronta para ser deliciada. O nome da receita? Cozinhado.

Até hoje, quando elas comem algo com esses ingredientes, vem aquela lembrança boa dos tempos de criança. A mãe, casada com um descendente de italianos, fazia mais ou menos a mesma coisa quando ocupava a cozinha para preparar ragú. O molho de tomate era sempre misturado a algum tipo de carne ou embutido. Até moela de galinha podia ir no preparo que acompanhava perfeitamente o macarrão. Essa história toda, contada não exatamente dessa maneira, ouvi na penúltima sexta-feira. Acompanhada de meu amor, comemoramos uma descoberta muito especial em nossas vidas numa cantina simpática, no bairro de Casa Forte.
À frente na criação das iguarias do restaurante, elas mesmas! As irmãs que fizeram muitos cozinhados na vida. Acredito que aqueles da infância eram bons. Mas acredito mais ainda que os de agora são bem melhores. Pelo menos foi essa a minha impressão quando coloquei na boca o ravioli de carne com o molho de tomate.Raspei o prato com pão e só não comi mais porque não havia espaço sobrando no bucho. Albânia e Gênova têm o Cucina de`Carli desde 2005, primeiramente aberto como delicatessen. Lá, elas preparam pães, massas, molhos, marinadas e muitas outras coisas gostosas. As dez mesinhas, no máximo, só vieram dois anos depois, quando atenderam a solicitação dos clientes que insistiram que elas servissem seus "cozinhados" no local. O público do almoço, de segunda a sexta, já é fiel. Os pedidos na delicatessen, que funciona de segunda a sábado até às 18h, também são constantes. Muito trabalho? Que nada! Elas adoram brincar com as panelas!

Este mês, as duas tiveram a grande idéia de oferecer jantares às sextas e sábados. Se eu pudesse, instalava outdoors em todas as esquinas do Recife: "Casais, famílias e amigos, não percam os cozinhados das irmãs de`Carli. Tudo que elas preparam é divino!". Mas como esse meu plano é impossível, fica nesta singela coluna a dica e a receita do molho de tomate, um cozinhado de gente grande.

RECEITA

Molho de Tomate
(Por Gênova e Albânia d'Carli, do Cucina d'Carli)
Ingredientes

- 600g de cebola
- 3 k de tomate bem maduros
- 3 dentes de alho
- 4 colheres de sopa de azeite extra-virgem
- sal e pimenta do reino a gosto

Modo de preparo
Corte e cozinhe os tomates em uma panela sem água. Passe na peneira para obter um suco consistente sem pele e sem sementes. Passe no processador a cebola e o alho. Coloque a cebola, o alho e o azeite em uma panela em fogo médio mexendo sempre até dourar bem. Adicione o suco de tomate e tempere com sal e pimenta do reino. Após levantar fervura, baixe o fogo e deixe cozinhar por pelo menos três horas, mexendo de vez em quando. Ao final deste tempo, o molho já terá perdido a acidez do tomate e estará consistente e saboroso. Prove e ajuste o sal se necessário. Caso queria variar o sabor, adicione algumas folhas de manjericão ou orégano fresco.

Serviço // Cucina d'Carli (restaurante e delicatessen). Rua Jader de Andrade, 163, Casa Forte. Fone: 3265-5781